Formação de policiais sobre racismo é vitória que Ednir comemora 30 anos após ser vítima de crime

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“Quando assumi o cargo de chefe no setor de almoxarifado, um diretor de contabilidade me chamava de galinha de macumba diante de todos os funcionários, e dizia que pelo fato de eu ser negra, não poderia estar exercendo um cargo de chefia. Eu estava no 5º ano de Ciências Contábeis na época. Poderia ter formado, mas o abalo psicológico… Não tinha como aceitar o que estava acontecendo comigo”.

Trinta anos depois, Ednir de Paulo traz este testemunho no primeiro curso de repressão ao crime de racismo/injúria racial voltado para policiais civis. A formação faz parte da campanha MS Sem Racismo. Todo cronograma e ementa do curso foram elaborados por doutores, professores e advogados, além da Subsecretaria de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial e militantes do movimento negro. A proposta é um dos legados deixados pelo deputado estadual Amarildo Cruz.

A injúria racial sofrida por Ednir aconteceu na década de 1990, e até hoje reverbera no emocional da vítima. À época, ela se baseou no artigo 5º da Constituição que diz “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e moveu primeiro um processo dentro da Câmara Municipal de Corumbá, onde trabalhava. O segundo passo foi fazer uma circular para todos os parlamentares, e então procurar uma delegacia de Polícia para registrar o boletim de ocorrência.

“A polícia fez toda a ocorrência do que tinha acontecido, mas não encontrou em qual artigo encaixar, porque não tinha essa tratativa ainda para a questão racial. Então, este processo ficou dentro da delegacia… Recebi até ameaças de morte”, recorda. O caso foi para o Judiciário e, mais uma vez, não havia como enquadrar o que tinha acontecido com Ednir no código penal, justamente pela ausência de legislação.

Houve toda uma movimentação dos advogados José Roberto Camargo de Souza e Aleixo Paraguassú Neto, juntamente com a sociedade civil até o processo chegar ao senador Abdias Nascimento, então titular da Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-brasileiras do Governo do Rio de Janeiro. No entanto, sem leis que pudessem enquadrar o caso como crime, não havia como seguir com o processo.

“Estive frente a frente com o autor da Lei Caó, porque eles tentavam encaixar a injúria como crime, mas não tinha como encaixar, por falta de ouvirem a base das comunidades negras, eu estava passando por um processo que afetava todo o meu psicológico”, conta.

O contexto tristemente vivenciado por Ednir serviu de ponto de partida para acrescentar à lei de injúria a questão racial. E hoje, 30 anos depois, o Brasil tem a Lei 14.532, de 2023, que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, com a pena aumentada de um a três anos para de dois a cinco anos de reclusão. Enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

“Acredito que a implantação do curso de formação para quem está lidando com isso na base vai ajudar muito. Casos assim acontecem dia a dia, você vê o que aconteceu comigo tantos anos atrás mexe com a minha estrutura, quando eu conto, estou revivendo toda aquela época. Isso que está acontecendo agora é um avanço e traz ações muito positivas”, ressalta Ednir.

Injúria racial sofrida 30 anos atrás até hoje reverbera na alma de Ednir de Paulo (Foto: Divulgação)

MS SEM RACISMO NA SEGURANÇA PÚBLICA

“Iniciamos um trabalho de militância lá nos anos 1980, e continuamos até hoje, porque ainda tem muito a ser feito. Estamos aqui na Acadepol, no curso de formação, tratando de educação, de reeducação e de ressignificar a história da população negra no Brasil”, apresenta a subsecretária de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial, Vânia Lúcia Baptista Duarte.

Pela primeira vez, sob gestão de Eduardo Riedel, o Governo do Estado tem a Subsecretaria de Igualdade Racial e a Secretaria Executiva de Direitos Humanos atuando na elaboração, formatação e execução deste curso de formação.

“É algo histórico, é a primeira vez que nós chegamos até a Polícia Civil para trazer essa temática que vem das nossas demandas. Algo que nós, como pessoas negras, corpos negros, identificamos. A inclusão da temática nas formações da Polícia Civil é muito significativa para mudança de pensamento e de atitude acerca do racismo”, enfatiza.

Outro ponto que a subsecretária destaca é a inovação do Governo ao determinar que duas delegacias especializadas, a Deops (Delegacia Especializada de Ordem Política e Social) e a DEH (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Homicídios) passem a investigar, apurar e reprimir crimes raciais.

Para o secretário-executivo de Direitos Humanos da Sead, Ben-Hur Ferreira, é de extrema importância para quem trabalha com a segurança pública ter este contato com a temática do racismo. “Temos que construir uma ideia do entendimento do racismo”, diz.

Delegados de Polícia Civil, Camilla Gerarde Barbosa Borges e Fabrício Dias dos Santos, ambos negros, também vão ministrar o curso abordando a questão jurídica do racismo e a postura do policial no momento de atendimento.

“Eu trago aqui uma fala da Angela Davis, que para mim norteia o comportamento de toda pessoa que é compromissada na luta contra o racismo: ‘Não basta ser racismo, é preciso ser antirracista’. E isso significa que temos de adotar condutas de enfrentamento ao racismo. Não basta bater a mão no peito e dizer: ‘não sou racista’, se diante de uma situação de racismo, vamos dar às costas”, enfatiza o delegado regional de Corumbá, Fabrício Dias dos Santos.

O curso que acontece nos dias 31 de julho, 1º, 2, 10 e 11 de agosto vai abordar os seguintes eixos: racismo estrutura e desigualdades raciais no Brasil e em MS; inteligência artificial e racismo digital; a história, cultura e desafios da população negra em relação à Segurança Pública no Brasil; a importância da delegacia especializada; aspectos psicossociais do perfilamento racial na abordagem policial; Darwinismo Social; aspectos legais do racismo e injúria Racial; filtragem/perfilamento racial; Polícia Civil no combate aos crimes raciais e de racismo religioso e a construção da identidade.

O corpo docente é composto por mestres, doutores, militantes e representantes do movimento negro de Mato Grosso do Sul:

  • Sr. Arthur Padilha
  • Profa. Dra. Bartolina Ramalho Catanante – UEMS
  • Camilla Gerarde Barbosa Borges – Delegada de Polícia
  • Dr. Douglas Silva Teixeira – MPMS
  • Prof. Dr. Daniel Estevão Ramos de Miranda – UFMS
  • Dr. Eurídio Ben Hur Ferreira – SEAD
  • Profa. Dra. Eugênia Portela de Siqueira Marques – UFMS
  • Fabrício Dias dos Santos – Delegado de Polícia
  • Dr. José Roberto Camargo de Souza – Advogado
  • Juan Raphael Martinez – Juan Sàngó – Pai de santo
  • Me. Kelly Cristina Alves Massuda
  • Sra. Romilda Neto Pizani – Fórum Movimento Negro
  • Profa. Vânia Duarte – Subs Igualdade Racial
  • Willer Souza Alves – OAB/MS

A proposta é que o curso de formação também chegue aos outros órgãos e demais forças de segurança de todo Mato Grosso do Sul.

5 COMENTÁRIOS

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