Elcio, Everton, Maria Eliza. Dos sete filhos de dona Ondina, mulher indígena da etnia terena, nascida e criada na Aldeia Cachoeirinha, em Miranda, estes três são surdos.
A descoberta veio pelas mãos das crianças ainda bebês. Quando, em vez de falarem, apontavam para o que queriam, nascia ali uma língua de sinais caseira, que viria a ser a língua terena de sinais oficializada.
É no galpão anexo à Igreja Católica, construída em 1931, na Aldeia Cachoeirinha, que as mãos falam e os olhos ouvem no III Encontro de Terena Surdos, resultado da luta de Ondina pelo respeito à cidadania dos filhos, e que hoje se estende a toda comunidade surda da região.
“Já passei por muitos obstáculos junto com os meus filhos. Já passei frio, passei fome, já chorei, já chorei muito. Fui discriminada junto com eles e sei o quanto a sociedade tem um olhar preconceituoso contra eles por serem surdos e indígenas. Por esse motivo que estou nesta luta e, enquanto eu estiver viva, nunca vou me calar diante dos preconceitos e discriminação contra qualquer indígena surdo”, se compromete Ondina Antônio Miguel, de 57 anos.
O tema do III Encontro é sobre educação e linguística dos indígenas terena surdos e acontece a 100 metros de onde a família de Ondina sofreu a primeira discriminação, 20 anos atrás. Por não ter intérprete de língua de sinais, a escola da comunidade avisou que não teria condição de dar aula para Elcio, o filho mais velho de Ondina.
A mãe não se cansa de contar a história. Durante quatro anos a educação do filho ficou suspensa. Ele não ia à escola, até que a família foi levada à cidade para procurar acolhimento e estudo.
Na terceira porta que Ondina bateu, a direção da escola não só aceitou as crianças como abraçou a família trazendo-os inclusive para fazer exames em Campo Grande. Ainda assim, era preciso percorrer diariamente 30 quilômetros contando ida e volta da aldeia para a cidade.
“Meu filho Elcio concluiu o Ensino Médio, se mudou para Campo Grande em busca de mais oportunidades. O Everton também concluiu o Ensino Médio e atualmente está morando comigo. A Maria Eliza seguiu o seu caminho, estudou, casou-se com um surdo e tem dois filhos fluentes em Libras, eles moram em Campo Grande. Eu, como mãe, sigo batalhando por eles para continuarem estudando e realizarem os seus sonhos. Eu não perco a esperança porque sei que eles são capazes”, ressalta a mãe.
Ondina hoje é falante de quatro línguas, a terena e a língua portuguesa, a língua terena de sinais e Libras (Língua Brasileira de Sinais). Mas, para que ela aprendesse a Libras, e os filhos não deixassem de usar a língua terena de sinais, foi preciso unir muitas mãos num trabalho pela inclusão.
Da reivindicação ao direito linguístico
Em 2007, os caminhos de Ondina e Denise Silva se cruzaram, durante o doutorado da professora, hoje pós-doutora em Linguística, técnica da SED (Secretaria de Estado de Educação), representante da Unesco no Estado e atuante em três frentes para a preservação das línguas indígenas.
“Um dia cheguei na aldeia e ela me falou da dificuldade que estava tendo em se comunicar com os filhos, porque ela falava, eles não entendiam e estavam se isolando. Fui tentar entender, e o que estava acontecendo é que quando o surdo aprende Libras ele automaticamente deixa estes sinais caseiros de lado”, explica Denise.
Como a convivência dos três filhos de Ondina se dava mais tempo na escola do que em casa, eles passaram a sinalizar Libras e escrever o português com a gramática da língua de sinais. “Temos línguas coexistindo ali, e eles não conseguiam estabelecer uma comunicação. Não era um problema emocional, nem rejeição, e sim uma dificuldade de comunicação”, pontua a técnica da SED.
Do encontro à oficialização da Língua Terena de Sinais
O contexto foi levado ao doutorado e uma união de esforços e movimentos se concentrou em fazer com que não só a família de Ondina, mas todos os demais indígenas surdos tivessem o direito linguístico garantido. Das discussões sobre o acesso à educação e o espaço na sociedade surgiram os encontros de surdos terena, que contaram com a participação de Shirley Vilhalva, professora indígena surda, doutoranda em Linguística Aplicada e professora titular da UFMS.
Shirley é pesquisadora e atua desde os anos 1990 com Libras, indígenas surdos e língua de sinais indígenas. “No passado eu fui muito contra os alunos saírem da aldeia e vir para a cidade porque parecia que ocorria um desligamento cultural. O trabalho tem que ser dentro da aldeia, por isso hoje estou muito emocionada, porque o grupo conseguiu a oficialização da língua terena de sinais. Estou extremamente feliz com o nosso trabalho”, sinaliza em Libras.
Com a proclamação da Década Internacional das Línguas Indígenas (International Decade of Indigenous Languages – IDIL 2022-2032), constituída pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o Governo do Estado desenvolve o Plano Estadual para a Década das Línguas Indígenas como forma de preservar a cultura das comunidades que vivem em Mato Grosso do Sul.
Dentro da ação da Unesco, os olhos do mundo se voltam ao trabalho iniciado em Miranda, primeira cidade do Brasil a co-oficializar uma língua indígena de sinais, a LTS (Língua Terena de Sinais) em decreto publicado no mês de abril deste ano. Na prática, o município tem como línguas oficiais o português, Libras, terena falada, terena de sinais e kinikinau.
A língua terena de sinais já está reconhecida como língua tanto dentro da academia quanto como política local. O próximo passo é reconhecê-la como língua de instrução, processo que está em tramitação no Conselho Estadual de Educação.
Movido pela força de Ondina, a mãe que segue na luta pela inclusão dos surdos terena, o trabalho de toda uma rede composta pela Secretaria de Estado de Educação, Coordenadoria de Modalidades Específicas, CAS (Centro de Apoio ao Surdo), UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), UFPR (Universidade Federal do Paraná) e Ipedi (Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural), não para.
Pioneirismo sul-mato-grossense
No III Encontro de Surdos Terena foi lançado o primeiro curso do País de formação de tradutores e intérpretes de língua terena de sinais, que será feito através do programa de educação a distância usando a plataforma “Universidade Aberta” da UFPR.
A proposta é ofertar o curso de tradução e intérprete de língua terena de sinais, e posteriormente o de práticas de língua terena de sinais. A formação faz parte do Plano Estadual para a Década das Línguas Indígenas, desenvolvido pela Coordenadoria de Modalidades Específicas da SED voltado para a comunidade terena de Miranda, estudantes e professores.
“Não que os indígenas surdos não vão aprender a Libras, mas ela é uma língua de comunicação para fora da aldeia. Aqui na comunidade eles precisam ter essa comunicação especial como no caso com a mãe, com os irmãos, visto que o indígena vai pra escola, vai pra cidade e aprende libras, a comunidade não”, resume Denise Silva.
Pioneira no Brasil, a proposta da formação de Mato Grosso do Sul servirá de exemplo para todos os estados. “Esta metodologia que estamos fazendo aqui vai servir de precedente inclusive para os povos do Amazonas, do Acre, Pará, Xingu, que estão isolados, para que consigam ter acesso ao direito linguístico, que antes de tudo é um direito humano”, especifica a professora e técnica da SED, Denise Silva.
Sem uma legislação na qual se espelhar, a ação inovadora vem sendo construída a partir de escutas e pesquisas envolvendo as universidades, Secretaria de Estado de Educação e a população que será beneficiada: a comunidade terena da Aldeia Cachoeirinha, em Miranda.
Doutora em Linguística e Língua Portuguesa, professora do curso de licenciatura em Letras Libras da UFPR, Kelly Priscilla Lóddo Cezar é a coordenadora da parte pedagógica do curso de formação, e quem conheceu ainda no doutorado a história de luta de Ondina.
“Como linguistas, nós sabemos que a linguagem é uma forma de emancipação, é natural do ser humano e todas as línguas são importantes. Nós precisamos pensar que a cada língua que entra em risco de extinção como estava a terena de sinais, a gente pode perder uma língua, sua cultura e pode perder histórias como a da dona Ondina”, descreve.
A formação vem para capacitar a comunidade terena, surda ou não, e principalmente para que a língua terena de sinais não seja extinta. Ao contrário de cursos que são adaptados posteriormente, o de língua terena de sinais é construído a partir das necessidades dos professores, pais e próprios alunos terena surdos.
A maneira de perpetuar o ensino da língua vem através da tecnologia. Coordenadora do Centro de Educação a Distância da UFPR, a professora Geovana Gentili Santos trabalha para a expansão da aprendizagem onde a pessoa estiver.
“Por meio dessa plataforma as pessoas vão poder fazer a formação de onde estiverem, para que a universidade rompa com as suas barreiras geográficas e, nós possamos levar a formação onde efetivamente é necessária”.
Sem deixar ninguém pra trás
Se dona Ondina não tivesse lutado pela inclusão e encontrado pelo caminho quem abraçasse não só sua família como a causa dos indígenas surdos, a mãe acredita que os filhos estariam até hoje isolados.
Ao olhar para trás, a matriarca dos Antônio Miguel fica feliz pela oficialização da língua terena de sinais e a formação de intérpretes para que a sinalização que ela entende e fala com os filhos em casa ganhe cada vez mais força.
“Tudo isso significa para mim que a luta nunca terá fim, mas que em breve vai dar bons frutos. Meu sonho para eles, os meus filhos, é que eles sejam alguém na vida”, acredita.
Sem deixar ninguém pra trás, uma das premissas do Governo do Estado, é fazer de Miranda um projeto piloto para que depois a língua de sinais seja oficializada e alcance estudantes surdos indígenas guarani.
Sinalizando, Edmara e Everton, filhos de dona Ondina, junto da mãe, reproduzem o lema que inspira o trabalho de cidadania do Estado de Mato Grosso do Sul: “Ninguém fica pra trás”.
“Quero agradecer a todo mundo que veio aqui, que veio de longe, e falar que nós queremos um futuro melhor”, finaliza em língua terena de sinais, Everton Miguel, de 26 anos.
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